Fonte: Azevedo Correia J e Santos JM. António Sardinha, o Carlismo e o regresso à Madre-Hispânia. Ayuso M (ed). A los 175 años del Carlismo: Una revisión de la Tradición política hispánica. Itinerarios/Fundación Elías de Tejada. Madrid, 2011. 157-174 (173-174).
É imperativo saber, depois de tudo isto, o que leva o Carlismo a manter-se com importância ao longo de quase dois séculos, quando tantas formas políticas da sua época já não são sequer lembradas. Na perspectiva do nosso António Sardinha, isto é ainda mais claro.
Primeiro, porque o Carlismo é uma forma de pensamento Cristão e Católico onde não sucedeu o retrocesso do político face à Justiça. Ao contrário de algumas formas de Catolicismo que vão progredindo através de sucessivas concessões ao seu tempo, o Carlismo não apresenta o elemento político como estanque ou imune à sociedade, mas também não aceita o princípio moderno (ou modernista) de que o governo é mera emanação da vontade da sociedade. No Carlismo a communio é o elemento político por excelência, porque só dessa forma é possível manter o núcleo da Justiça intocada perante aquelas maiorias e minorias que a querem tomar como arma para o seu plano privado de poder. Num momento em que o Poder se encontra à solta e em que ninguém questiona os limites do poder democrático e da vontade humana, esta é uma lição fundamental, que mesmo poucos católicos parecem compreender.
Em segundo lugar, porque o Carlismo, e sua forte tendência Hispanista, é uma reflexão sobre a identidade dos povos que permite compreender o “político” através de uma dimensão narrativa. O Carlismo possui uma vertente dinâmica que compreende as comunidades num seguimento narrativo que é o oposto da doutrina constitucional actual. Esta última, ao tomar o momento constitutivo da comunidade política como acto da vontade ex-nihilo, procede a um conjunto de cortes com a Realidade. Na sua demência, o constitucionalismo actual opera mediante um conjunto de reflexões sobre os seus próprios actos e percepções, em vez de se pensar a justiça da norma, é pensada a vontade do legislador, o que conduz a que a comunidade política se encontre vinculada pela vontade de outros e não pelo valor intrínseco da lei. As portas abertas por esta forma de pensar a todo o tipo de injustiças, são por demais evidentes. O Carlismo, porém, opera num contexto de continuidade histórica, em que a comunidade se compreende e referencia face a elementos históricos e transcendentes (Portugal às Espanhas, as Espanhas a Roma, Roma a Atenas e Jerusalém). Pode-se assim falar de um pensamento que é revolucionário, no sentido em que esta palavra significa a adequação da matéria ao “real” – verdadeira essência das coisas –, mas que sabe que a identidade só pode ser um continuum de gerações, em que, como viram Burke e Chesterton, os vivos não têm o direito de destruir a obra dos que não estão (os nossos maiores e os nossos descendentes).
O Carlismo tem também uma palavra para o nosso tempo, porque hoje vivemos na Ibéria. Portugal é Ibéria, a Espanha é Ibéria, o Benelux (nome que bem poderia ser uma marca de sabonete de baixo custo e nada representa senão a ânsia funcionalista do nosso tempo) é Ibéria. A Ibéria é o país inventado, sem referências e tradições, sem povo, onde se vive uma pequena parcela de cosmopolitismo e onde toda a comunidade (e Justiça) é afastada do léxico e da esfera pública. Vivemos numa Europa Unida em que todas as perspectivas são válidas, excepto a perspectiva que não se ajoelha perante o altar da subjectividade, em que todos têm direito à tolerância, excepto os que se consideram portadores de Verdade. Vivemos numa gigantesca consumer-nation em que os políticos são eleitos e reeleitos pelos seus feitos económicos e de gestão. Temos energia, água canalizada, segurança-social! Não temos um pingo de justiça e achamos que uma mulher pode decidir se o seu filho vive ou morre, consoante o seu apetite diário. Achamos desnecessária a reflexão sobre “o que é a vida humana” e tomamos como válida a resposta de cada um, por mais irreflectida, ilógica ou inválida que seja. Temos documentos constitucionais por todo o continente que fazem dos povos da Europa nações confessionais (Alemanha, Polónia, Irlanda, Grécia, Malta, Dinamarca, p.ex.) e, no entanto, vemos descrita a Europa como cristalizadora dos princípios de separação do Estado e da Igreja, de laicismo e de secularidade total e todas as referências ao Cristianismo serem apagadas do diálogo público (substituídas pela linguagem dos Direitos Humanos, dos interesses do consumidor ...). A futura constitucionalização, que inclui um fundamento laico a essas da Europa não deve ser vista como um coup d’état?
Por fim, o Carlismo tem sentido no mundo de hoje, porque tem capacidade de repetir a influência que teve em António Sardinha. Precisamos de mudar esse Catolicismo difuso e procedimental misturado de um conservadorismo ideológico, como o primeiro de António Sardinha, a um pensamento que assume Cristo como facto essencial e critério supremo de justiça da alma e da cidade.
Se assim fôr, a mensagem civilizadora das Espanhas não se deu por terminada.
Jorge Azevedo Correia e Juan Matías Santos